sábado, 5 de junho de 2010

Pop Cult 4, por Felipe Hirsch, n'O Globo

Um dia desses, meu telefone toca desesperado. É a voz comovida do meu amigo Guto.

- Robbb…confirm…vem…lip…ati!!
- O que, cara??
E tomando fôlego, de uma vez só
- ROBERT CRUMB VEM PRA FLIP EM PARATI!!
Passamos o final da década de 80 e o início  dos anos 90, eu e boa parte dos meus amigos, frequentando um prédio abandonado, moradia do Guto, no centro  de Curitiba. Apenas um apartamento tinha água e eletricidade. Lá dentro, um rodízio, 24 horas, de jovens em busca de informações perdidas. Cultura em geral: rock, quadrinhos, literatura, filmes, seriados, games e por que não? drogas. Nesse lugar, ouvi pela primeira vez o vinil de Doolittle do Pixies. Líamos Leminski, Fante, Kafka, ouvíamos Bowie,  assistíamos Billy Wilder. Entre pratos sujos e pontas de cigarro, repousava a valiosa coleção de quadrinhos do meu amigo. Líamos Robert Crumb muito. Líamos muito Will Eisner.
O perigoso senhor Crumb, que aterrorizará nossa pequena cidade colonial, é filho de um pai fuzileiro naval repressor e de uma mãe católica, maníaca depressiva, viciada em pílulas para emagrecer e anfetaminas. Robert cresceu sob a influência e amizade de seu irmão mais velho Charles, que o introduziu ao mundo dos quadrinhos. Charles cumpriu um destino trágico. Ainda menino se apaixonou, perdidamente, pelo ator mirim Bobby Driscoll que interpretava o personagem Jim Hawkins em A Ilha do Tesouro. A partir daí, desenvolveu uma obsessão pela história, reproduzida, incansavelmente, em seus desenhos e brincadeiras infantis. Adolescente, Charles Crumb foi vítima de violentos atos de bullying na escola e caiu numa profunda depressão que o deixou, pelo resto da vida, recluso na casa de sua mãe, vivendo a base de doses cavalares de antidepressivos. Passou os últimos anos de sua vida relendo, compulsivamente, livros da era Vitoriana e preenchendo, obsessivamente, milhares de folhas com desenhos repetitivos. Charles, a maior influência da vida do irmão Robert Crumb, acabou se suicidando em 1992. Seu irmão mais novo, Maxon, vive em um pequeno quarto de hotel, pintando obras sádicas, meditando numa cama de pregos e bolinando meninas chinesas na entrada do metrôOptou pelo celibato, o que, ele acredita, o levou a epilepsia. Mensalmente engole uma longa fita de tecido que, no trajeto entre sua boca e ânus, limpa seu intestino. Boa parte do relato acima, você poderá ver, em detalhes, no incrível documentário Crumb de Terry Zwigoff (aquele que dirigiu Ghost World).
Robert saiu de casa antes de completar vinte anos. Trabalhou, em Cleveland, como ilustrador para uma grande corporação de cartões de felicitações. Seu chefe definia seus desenhos como grotescos e o treinou para desenhar de maneira fofa. Crumb, mais tarde, confessou sua atração sexual por personagens adoráveis e felpudos, citando Pernalonga, como o mais desejável. Reconhecido masturbador, Crumb desenhou a coleção completa de portraits das meninas que cobiçou no ginásio. Em todas, traços sinuosos insinuam suas intenções. Eu ouvi toda essa baboseira de ser “você mesmo”. Mas quando eu era “eu mesmo”, as pessoas me detestavam. Fracassei tentando ser um garoto normal. Então passei a frequentar o lado negro da cidade, em busca de velhos discos 78 rotações.
Em São Francisco, nos anos 60, Crumb se mistura à cena da contracultura de Haight-Ashbury. Seu envolvimento com o LSD traz uma característica de fluxo de consciência para seus personagens. Não que ele se sentisse à vontade com o movimento flower power, pelo contrario, confessou ter dormido em pé durante um show do Grateful Dead. Patinho feio dessa geração, Crumb sempre se vestiu com seus poídos ternos tradicionais, ouviu viciadamente seus inúmeros vinis dos anos 20 e 30 e ilustrou uma coleção de portraits de  pioneiros do folk, jazz e blues americano.
Vendendo as primeiras edições da Zap Comix (revista seminal de quadrinhos independentes), no carrinho de bebê do seu primeiro filho, Robert Crumb cresceu e ganhou uma projeção enorme no circuito cultural alternativo do país. Criou, nessa época, alguns de seus mais ilustres personagens: Mr. Natural, Keep on Truckin, Devil Girl. Foi convidado para ilustrar a Rolling Stone, criou a capa de Cheap Thrills para Janis Joplin, influenciou o renascimento criativo de Will Eisner, redefiniu o termo underground comix. Ainda assim, passava seus dias sozinho, em um café, desenhando os transeuntes e ignorando a fama. Dana Crumb, sua primeira esposa, autorizou o uso da personagem Fritz, The Cat em um longa metragem. Deprimido com o resultado, Robert desenha a morte do personagem que ele tinha criado na adolescência. O gato morre assassinado por uma ex-namorada com um fura-gelo.
Acusado por feministas de produzir pura pornografia sexista, misógina e, por vezes, pedófila e incestuosa, Crumb foi exaltado por grandes críticos de arte que salientavam sua crítica social obstinada e a qualidade soberba e clássica de sua arte gráfica comparada, no seu senso da monstruosidade,  a obra de Goya e Brueghel. Só o impacto do personagem autobiográfico de Crumb, perdido e entregue ao desejo, ao sofrimento intelectual, foi capaz de nos revelar o horror do subconsciente Americano.

Sophie, nasce no início dos anos 80. Filha de Crumb e Aline Kominsky, atual esposa e personagem constante de sua obra. Nos anos 90, Robert e Aline, desiludidos com os valores da America, decidem trocar uma mala cheia de originais por uma casa na pacata cidade de Sauve, sul da França. Com exceção de raras viagens ao seu país, Crumb é um recluso que passou os últimos anos ilustrando o Livro do Gênesis. Este lançamento é o motivo de sua inacreditável visita ao Brasil. 
- ROBERT CRUMB VEM PRA FLIP EM PARATI?? 

No dia 7 de agosto se reunirão, na mesma mesa, Robert Crumb e Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers. Será a penúltima mesa do dia. A última está reservada para o Rei de Nova Iorque, Lou Reed.

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