quarta-feira, 28 de julho de 2010

Pop Cult 11, por Felipe Hirsch, n'O Globo


Os olhos tristes e sombrios de Rufus Wainwright, borrados de maquiagem negra, ilustram a capa de All Days Are Nights - Songs For Lulu. O mais recente lançamento do artista canadense é uma coletânea de músicas dedicadas à personagem principal das obras O Espírito da Terra e A Caixa de Pandora do dramaturgo alemão Frank Wedekind. Adaptada mais de uma dezena de vezes para as telas de cinema, entre elas na versão clássica de Georg Wilhelm Pabst com Louise Brooks, a complexa obra sobre o instinto selvagem de Lulu também foi usada na ópera póstuma do compositor Alban Berg, e até como fonte de inspiração para uma série de videogames.

Aqui, no universo de Rufus Wainwright, Lulu é a interlocutora do compositor. Esse endereçamento demonstra também o estado de espírito de Rufus durante a realização do disco. A morte por câncer de sua mãe, a cantora de música folk Kate McGarrigle, inspirou um album melancólico e nebuloso, gravado em piano e voz, como se o coração do artista tivesse sido extraído, arrancado como o de Lulu, por Jack, o Estripador, no último ato da obra. Rufus disse que "Lulu é a soturna e nociva mulher que vive dentro de todos nós, como a Dark Lady, personagem dos sonetos de Shakespeare". 

O disco é uma coletânea das diversas obras conceituais realizadas por Rufus nos últimos anos: os citados sonetos de Shakespeare musicados para uma peça do Berliner Ensemble, dirigida por Bob Wilson, no Theater am Schiffbauerdamm. Uma ária de sua primeira ópera, Prima Donna, sobre o amor de uma velha cantora lírica e um jornalista; e algumas canções populares, compostas durante a tour em companhia de sua irmã Martha e de sua mãe. Entre estas, a bela "The Dream", "True Love", "Sad with What I Have" (que cita o Barba Azul de Perrault e Bartok), "Martha" (um recado deixado pelo irmão mais velho), e "Zebulon" que encerra o disco com referências sobre o estado de saúde de sua mãe, Kate. "Give Me What I Want and Give It to Me Now!" é uma réplica às críticas maldosas recebidas por seu tortuoso trabalho em Prima Donna. Numa das mais violentas, um famoso crítico de música erudita afirmava: "não basta se vestir como Giuseppe Verdi, Sr. Wainwright". No trecho (Les feux d`artifice t`appellent) da ária de sua ópera, gravado para o disco, Rufus bate no piano e dedilha suas cordas, simulando sons de fogos de artifício. Tive a sorte de presenciar a produção de "Shakespeares Sonette" no Berliner Ensemble, e também a estréia da ópera Prima Donna, esta m em Manchester. Nos dois trabalhos, o brillhante talento de Rufus se destacava. No primeiro, percebi a consciência e referências à tradição musical (Dessau, Eisler e Weill) da companhia Brechtiana. No último, umatour de force lírica e vigorosa resistia a uma encenação ingênua e duvidosa.

A questão mais interessante acerca da obra de Rufus Wainwright foi levantada por Elton John. Ele disse: "Se nós não estivermos preparados para ouvir as músicas de Rufus Wainwright, estamos com sérios problemas". Disse isso, porque temia que a obra de Rufus fosse recusada pelos meios da música popular e confinada a guetos de minorias intelectuais. É fato, Rufus Wainwright vende muito pouco. Nos últimos anos vem se dedicando, cada vez mais, a projetos conceituais. Entre eles a recriação, na íntegra, do famoso show de Judy Garland no Carnegie Hall em 1961. Em recente entrevista, Rufus Wainwright, confortável com a sua posição, disse que sua missão era salvar os jovens de Lady Gaga.

Me apaixonei por Rufus na chuva. No Central Park, no show Release the Stars, com guarda-chuvas batendo nos meus olhos. Desde o início do show, a impressão era tão comovente que o público esperou pela segunda parte, durante um intervalo programado de 15 minutos, parado em pé sob a tempestade. A sua voz, inesquecível, cantava algumas frases sobre um passeio pelo Tiergarten de Berlim, dizendo "não importa se está chovendo", enquanto o público encharcado aplaudia concordando. Naquele momento, Rufus já era o novo gênio da história musical da cidade. Um virtuoso enfant terrible que gravou o promissor primeiro disco com arranjos de cordas do mestre Van Dyke Parks. Aos 14 anos, Rufus foi abusado sexualmente no Hyde Park de Londres por um homem conhecido em um Pub. Optou por uma vida celibatária por quase uma década depois da experiência, o que, segundo o próprio, o levou a uma vida promíscua em seguida. Durante o período de gravação de seu segundo e mais vendido disco, Poses, Rufus morava no clássico Chelsea Hotel e dedicava-se a uma intensa vida boêmia, regada a Crystal Meth. Sua dependência atingiu o clímax quando, durante "a semana mais surreal" de sua vida, Rufus ficou cego, temporariamente. Reabilitado, gravou em uma extensa sessão, com a complexa e brilhante produção de Marius de Vries, as duas partes de All I Want. Sua obra-prima.

Desde então, daquele dia no parque molhado, venho cantarolando os versos de 14th st., música de encerramento do show. Há 4 anos. Aquela parte " (...) don`t ever change, don`t ever worry..."

No início dos anos 90, o jovem Rufus, caminhava pelas ruas nevadas de Manhattan, até a St. Mark`s Place, no lado leste do Village, para assistir outro jovem talento, por quem Rufus tinha uma relação platônica de paixão e ódio. Esse outro garoto chamava Jeff Buckley.

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